CAVERNA
Porque escrever é ato de libertação
Textos
Tortas, mas bonito.
 
Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma.
 
Memórias Póstumas de Brás Cubas
Machado de Assis
 
Eu tenho pernas tortas. Bem, eu não sabia desse fato desde sempre. Foi assim, quase por acaso que percebi que meu pé esquerdo olha para o direito quando estou distraído ou que minha perna esquerda foi colocada na direita quando deveria ter sido colada na esquerda.
 
A descoberta foi quando passando pelas gurias do Oitavo Ano, descobri que estava falando do baixinho do Nono A. Bem, minhas pernas são tortas, mas meu raciocínio é direto e reto. O único baixinho de um metro e sessenta do Nono Ano A era eu, portanto, as gurias falavam de mim. É bonitinho, mas suas pernas são tortas. Baixinho, isso não é problema para você Gabi? Acho que não Marta, mas as pernas...
 
Peguei-me a observar meus cambitos e comecei a perceber suas desproporcionalidades. Grossas perto das nádegas e finas como um graveto abaixo dos joelhos. E os pés? Sim, realmente um se encontrava com outro ao andar. Lembrei-me das vezes que tentava jogar futebol e nunca tive uma mira boa, mesmo que se eu estivesse a menos de um metro das redes. Não era meu senso de direção. O meu senso estava certo, meus pés só poderiam jogar realmente para o lado que apontavam. Por outra chance, numa corrida entre os garanhões da turma, eu quase ganhei pela resistência que minhas coxas têm, mas tropeçar antes de cruzar a linha de chegada foi terrível. Apesar de que isso não foi o mico dos micos. Eu, um Nerd, já tinha predisposições para mico antes de nascer. Mas o que seria mico ou ridículo? Antes dessa descoberta, sempre vivi bem com minhas pernas tortas. Claro, eu não sabia que o desenho belicoso e charmoso dos meus pés tinha um adjetivo assim. E o que muda a minha vida ao saber que elas são tortas? Acho que nada.
 
Então comecei a dizer para mim: Gosto das minhas pernas tortas. Sempre tenho o hábito de me elogiar. Achava que meus elogios para mim mesmo eram mais sinceros do que os feitos de outros. Mas acho que meu mantra silencioso escorregou e aumentou o volume sem querer e ouvi-me dizer bem alto “GOSTO DAS MINHAS PERNAS”. Não fui eu apenas que ouviu, acho que todos do recreio, até as gurias do oitavo que começaram a sorrir. Envergonhado tentei fugir. Dei o primeiro passo e o segundo me levou de boca para o chão. O salgadinho pintou o chão a minha volta de amarelo milho e aí é que a risadaria foi geral.
 
Levantei, verifiquei o joelho que doía e saí. Bem! Saí sim. Eu ia fazer o quê? Fui embora com minhas pernas tortas ou as minhas pernas tortas me levaram. Mas ainda ressoava em mim a voz das gurias: Tortas, mas bonito. Desde aquela época eu comecei a sentir que Machado de Assis era gênio. Não era apenas romancista.
 
 
Valdir dos Santos Lopes
valdirfilosofia
Enviado por valdirfilosofia em 26/11/2015
Alterado em 26/11/2015
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.
Comentários
Site do Escritor criado por Recanto das Letras