CONVERSANDO SOBRE O PORTUGUÊS
Um amigo leitor, ao encontrar minha crônica sobre língua portuguesa, enviou-me o seguinte comentário:
“Meu caro Valdir, gostei demais de suas dicas sobre nossa "última flor do Lácio, inculta e bela". Tanto que vou pedir que vc me tire duas dúvidas advindas de seu próprio texto. 1ª) Lá em cima vc diz: "Mas o que me chamou a atenção FOI os dizeres na BALANÇA PESADORA ELETRÔNICA do açougue, assim bem ILUMINADO:" Será que seria correto grafar: Mas o que me chamou a atenção FORAM os dizeres na BALANÇA ELETRÔNICA do açougue, assim bem ILUMINADOS (ou ILUMINADA, se a concordância for com BALANÇA):? Assim, sem o PESADORA, visto que esta é a função intrínsica e única de toda balança, ao meu ver. 2ª) Na oração, tb sua, "fui ao supermercado comprar linguiça()porque a gente vai fazer um churrasco lá em casa", não seria o caso de se colocar uma vírgula depois de LINGUIÇA, para separar a oração principal da oração subordinada adverbial causal? Sempre tenho dúvidas de pontuação. Parabéns pela ideia de nos ajudar com estas lições de gramática. Abraços.”
Fico muito feliz com a participação. Realmente conseguiu encontrar algumas questões em meu texto. Pertinentes, já que estamos falando sobre o uso da língua. Mea culpa. Minha professora Adélia sempre dizia: Valdir, frases curtas. Frases curtas.
Vamos lá.
Escrevi em meu artigo, A GENTE NO MERCADO PRA COMPRAR QUINHENTOS GRAMAS DE LINGUIÇA, o seguinte período:
"Fui ao supermercado comprar meio quilo de linguiça ou quinhentos gramas. Mas o que me chamou a atenção foi os dizeres na balança pesadora eletrônica do açougue, assim bem iluminado:"
A CONCORDÂNCIA VERBAL
Em meu texto, conjuguei o verbo “ser” no pretérito perfeito da primeira pessoa do singular: “foi”.
A questão é se eu não deveria concordar o verbo com o sujeito “dizeres”, o que seria mais adequado.
No caso, para não complicar, poderia ter escrito:
Os dizeres na balança pesadora eletrônica do açougue chamaram a minha atenção.
Percebe como fica mais claro quando usamos uma frase simples? Sem aquela coisa de subordinação ou coordenação. Sujeito, verbo e complemento. O núcleo do sujeito é “dizeres”, então o verbo concorda com ele. Na frase acima o verbo é “chamar”.
O verbo da oração discutida aqui, “ser”, no tempo destacado, deveria estar no plural, ou seja, “foram”, segundo a intervenção do leitor; já que concorda com o termo “dizeres”.
De forma mais clara:
Foram os dizeres que chamaram a minha atenção.
Ou até
Os dizeres foram que chamaram a minha atenção.
E até mesmo:
Que chamaram a minha atenção, foram os dizeres.
Aqui vai da escolha do freguês. Ou da ousadia do escritor. Todas as frases têm como sujeito simples determinado o termo “dizeres”, o verbo de ligação “foram” e o predicativo do sujeito, que no caso é uma oração subordinada substantiva predicativa: “que chamaram a minha atenção.”.
Fazendo uma rápida pesquisa em nossos alfarrábios linguísticos veremos que, quando o sujeito é o pronome relativo “que”, o verbo deve concordar com o antecedente do pronome. Em nossa oração, então, identificamos que o sujeito do verbo “chamaram” é o pronome relativo “que”. Por sua vez, refere-se ao termo antecedente “dizeres”, por isso os verbos das orações presentes concordam com esse termo.
Devemos rever o período acima e concluir que se trata de um período formado por uma oração principal: “Foram os dizeres” e uma oração subordinada substantiva predicativa: “que chamaram a minha atenção.”
Sabemos que uma oração é subordinada, porque depende de outra oração, a principal, para completar-lhe o sentido. Que é substantiva, porque substitui ou faz a vez de um substantivo. Exemplifico:
Os dizeres foram isso. - O termo “isso” é um pronome substantivo. Posso, no lugar desse pronome, substituir pelos substantivos “acordo” ou “ convite”.
Então ficaria:
Os dizeres foram o acordo.
Os dizeres foram o convite.
De pronto, você poderá questionar sobre essa relação de termos no plural, verbo no plural e termo no singular. Vamos com calma. Isso é mais problemático do que parece.
No caso do período “Os dizeres foram que chamaram a minha atenção”, a oração “que chamaram a minha atenção” está substituindo o substantivo “acordo” ou “convite” ou o pronome “isso”.
Concordando que os termos “acordo”, “convite” e “isso”, nas frases acima exercem a função de predicativo do sujeito (termo – substantivo, adjetivo ou pronome – que encerra a definição, um estado ou qualidade do sujeito), a oração que então substitui esses termos é chamada de oração subordinada substantiva predicativa.
Vejamos o recorte do meu texto, no artigo analisado:
“O que me chamou a atenção foi os dizeres...”
Se ratificamos, há pouco, que a oração “o que me chamou a atenção” é um predicativo do sujeito, então o correto era eu ter pluralizado o verbo para concordar com o sujeito. No caso, ter escrito:
“O que me chamou a atenção foram os dizeres...”
No entanto, percebeu os exemplos que usei acima?
Os dizeres foram o acordo.
Os dizeres foram o convite.
Incomoda-nos essas frases, pois temos entre o verbo de ligação dois termos. Um está no plural (os sujeitos) e outro no singular (os predicativos). E agora?
O professor Pasquale Cipro Neto já comentou sobre essa armadilha que o verbo ser provoca quando liga termo singular com termos plurais. Em seu texto “Nossa língua é os pés” ele comenta que:
“Quando o verbo ser une nome de coisa no singular e nome de coisa no plural, prevalece o plural, independentemente da ordem.” (NETO, 2001, p. 85).
Então:
Nossa língua são os pés.
E
Os pés são nossa língua.
Seguindo a analise do professor, consideraremos que o sujeito das duas orações é “pés”, já que o verbo concorda com esse termo. Por extensão, o termo “nossa língua” é o predicativo do sujeito. Observe que a primeira frase está na ordem inversa da língua, ou seja, predicativo + verbo de ligação + sujeito. E a segunda frase está na ordem direta.
Só que as coisas não são tão simples assim. O gramático Napoleão Mendes de Almeida, em sua GRAMÁTICA METODOLÓGICA DA LÍNGUA PORTUGUESA, esclarece:
PARTICULARIDADES
738 – Há certos casos curiosos em que o verbo deixa de concordar com o sujeito para concordar com o predicativo. Constitui esse um fenômeno de “concordância por atração” e se opera sempre que na oração entra o verbo ser ou parecer e um sujeito constituído de o, aquilo, isso, tudo: (Almeida, 2001, p. 454)
Sendo assim, podemos encontrar frases como:
Aquilo são despropósitos
O sujeito simples é “Aquilo”. O verbo de ligação, “são”, que está concordando com o predicativo “despropósitos”. Seguindo o professor Almeida, na oração ocorreu o que chamamos de “concordância por atração.” O mesmo professor ainda exemplifica outras passagens, em seu livro:
“O que lhe desejo são felicidades”;
“Tudo são vestígios do agradecimento”;
“Não são isto conceitos nem encarecimentos”;
“O que eu fiz aqui melhor foram os meus desenhos”;
“O que trago são fatos e teses”.
Mexemos em um ninho de vespa, não?
Retornando ao Professor Pasquale, em seu livro PORTUGUÊS COM O PROFESSOR PASQUALE – concordância encontramos alguns exemplos curiosos:
“A cama eram umas tábuas tortas”;
“No meio da chuva, o coração do seu carro são as palhetas”;
“O maior problema do governo são as importações”;
“A grande esperança do povo daquela cidade são as chuvas.”.
Nesses casos, o professor defende que
“Apesar de estranhas, essas concordância são perfeitas... o verbo ser liga coisa e coisa (...). Chamamos de coisa o que não é ser humano. Nas frases, uma das coisas está no plural. A tendência, nesses casos, é o emprego do verbo ser no plural. (NETO, 2001, p.66)
Assim tanto Pasquale quanto Almeida ensinam-nos que o adequado é deixar o verbo no plural. Sempre lembrando o que Pasquale muito bem explicou, pois o fenômeno deve ocorrer quando o verbo ligar coisa e coisa.
Voltando a minha frase, agora apoiado nos comentários dos professores acima:
“Mas o que me chamou a atenção foi os dizeres”
Compreendemos que o verbo deve estar no plural. Escrever “foram” e não “foi”. Finalizado? Não.
Almeida vem constatar, também, que é possível encontrar orações onde o verbo manteve-se no singular:
“Exemplos no entanto não faltam que contrariem a regra acima transcrita, de autores que muito souberam manejar nosso idioma, contando-se entre eles Júlio Ribeiro, Camilo e Herculano.” (Almeida, 2001, p. 454)
E tece exemplos
“Ao chegarem junto da caneleira, ainda tudo era trevas”;
“O que me falta é exemplos de bons costumes”;
“O que eu precisava era limonadas e orchatas”;
“O que não queremos é questões”;
“Depois disto, o que eu poderia desejar-te era doze contos de renda”;
“O que não somos obrigados a aceitar é os erros e abusos dos ministros”.
Eu não quero justificar meus deslizes, aliás, adoro deslizes. Mas o período que escrevi no artigo pode não estar adequado, porém não está de todo ilícito.
“Mas o que me chamou a atenção foi os dizeres na balança pesadora eletrônica do açougue”
Acredito ter começado uma boa discussão. Não bato o martelo, pois há críticos que denunciam essa minha artimanha de tentar justificar o injustificado. O importante é compreender que a nossa língua é viva e, como vimos, proporciona várias reflexões.
Você, querido leitor, poderá até questionar a necessidade da precisão, para aqueles que querem se preparar para concursos e vestibulares. Bem, eu digo que, se os próprios teóricos, gramáticos e lingüistas não entram em acordo sobre vários pontos da nossa língua portuguesa, quem dirá esse pobre escritor que aqui fala.
A CONCORDÂNCIA NOMINAL
Questiona-se o uso do adjetivo “iluminado” no meu artigo. Veremos:
“Fui ao supermercado comprar meio quilo de linguiça ou quinhentas gramas. Mas o que me chamou a atenção foi os dizeres na balança pesadora eletrônica do açougue, assim bem iluminado”
Claro fica que o termo refere-se aos “dizeres”, da oração que precede. No caso o erro aqui é não ter pluralizado. Escreve-se “iluminados”.
Poderemos também querer referir à balança, nesse caso, escreveremos “iluminada”.
Mas a minha primeira intenção foi ressaltar “os dizeres” que pululavam no visor da máquina, por isso, iluminados.
Questionado também sobre a redundância do adjetivo “pesadora” ao lado do termo balança – “visto que esta é a função intrínsica (sic.) e única de toda balança, ao meu ver” – quero defender a minha vaidade e lançar mão da licença poética.
É evidente que apresentei muita informação para um produto só. É aquela coisa de “subir para cima” ou “descer para baixo” e, até mesmo, dizer, no município tal você será candidato a vereador municipal. Entendeu o chiste?
Mas, também, se quisermos fazer uma brincadeirinha com o nosso colega “Google” e escrevermos entre aspas o par “balança pesadora”, em menos de 60 segundos teremos por volta de 20.000 ocorrências. Muito, né? (quero dizer, “não é?)
Em tempo. Estamos sujeitos sempre a cometer equívocos em relação à língua portuguesa. Por exemplo:
Escrevemos “intrínseca” e não “intrínsica” quando queremos dizer de algo que é próprio e essencial.
PARA CONCLUIR: A MALFADADA VÍRGULA
Meu querido interlocutor, por fim, questiona o fato de não ter colocado vírgula antes do termo “porque” que inicia uma oração subordinada adverbial causal.
No meu período:
“Fui ao supermercado comprar linguiça porque a gente vai fazer um churrasco lá em casa.”
Temos dois verbos (fui e comprar) e uma locução verbal (vai fazer). Por extensão temos três orações. A primeira é “Fui ao supermercado” que é a oração principal da oração “comprar linguiça” que, por sua vez, é uma oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo. Ufa!
Já a oração “porque a gente vai fazer um churrasco lá em casa” é uma oração subordinada adverbial causal da oração “Fui ao supermercado comprar linguiça”
O que interessa aqui é a ausência da vírgula. O fato é que sua presença antes de uma oração subordinada adverbial causal não é obrigatória. Em Cunha (1985, p. 589) temos:
“Não veste com luxo porque o tio não é rico” (Machado de Assis)
Ou podemos pensar em períodos como:
Não foi à escola porque ficou resfriado
Não ganharam o campeonato porque não tiveram apoio da federação
Não concordou com o artigo porque estava faltando explicação
O fato é que a vírgula nesse caso contribui para deixar o texto mais claro e evitar algum ruído de interpretação.
É isso aí!
REFERÊNCIA
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 44ª Edição. São Paulo, SP, Saraiva, 1999.
CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 2ª Edição. Rio de Janeiro, RJ, Nova Fronteira, 1985.
NETO, Pasquale Cipro. Inculta e Bela 1. 4ª Edição. São Paulo, SP, Publifolha, 2001.
_________. Português com o Professor Pasquale – concordância verbal. São Paulo, SP, Publifolha, 2001.
valdirfilosofia
Enviado por valdirfilosofia em 14/05/2012