CAVERNA
Porque escrever é ato de libertação
Textos
Na sala de aula do 2º ano E, todas as vinte e cinco criaturinhas de oito ou sete anos, olhos grandes e brilhantes, estavam fora do lugar. Enquanto o professor, lá pela altura dos vinte minutos passados do início da aula, tentando colocar cada um no seu devido assento, marcados com nomes caprichosamente em um cartão bege e encapados com papel contact. Mas João incucou em sentar na cadeira da Sarah. Ela chorosa, com o nariz molhado, injustiçada, puxa o cabelo do pequeno, que agarra a cadeira com as duas mãos e cola o bumbum na cadeira disputada. A verdade é que se separa algum Estado do Brasil, mas não se tira o bumbum de João da cadeira.

Já Valter está de pé, na cadeira da Juliana, com os braços estendidos para o alto, próximo ao terrível ventilador de teto, afastando o estojo rosa Moranguinho, que, provavelmente, ele pegou dela. Como sei? Porque ela está puxando o calção do garoto e gritando desvairadamente “é meu”, “é meu”, “é meu”, Ééééé... meeeeuuuuuuuuu”.

O professor decide acudir a pequena de olhos verdes e molhados antes que Valter fique apenas de cueca para a plateia mirim. Só que, mais rápido que o pensamento, Carolina, a gigante, decide empurrar Valter, que cai em cima da Juliana. Odair, o da janelinha (professor, se eu colocar debaixo do travesseiro eu vou ganhar algum dinheiro?), grita: “bolinhooooooo” e pula em cima de Valter. Três pequenos atendem prontamente o sinal e engrossam o bolo da confusão. Nisso Letícia agarra a perna do professor, que corre o risco também de ficar de cueca. “Quero ir no banheiro, beber água”. O desespero do professor é tanto que não percebe que Zeca, o de olhos azuis, está cortando o cabelo de Taís, a de cabelos de fogo. E Zeca, o de brinco na orelha, descobriu que é gostoso deitar na mesa do professor. Mais gostoso ainda é usar a bolsa como travesseiro. Principalmente a bolsa do computador que o professor usa.

“Quero ir no banheiro beber água”. O professor atordoado tenta tirar um por um do bolo como que desembaraçando um novelo de lã e pensa... “o vereador disse que eu ganho demais pelo que faço.” “Quero ir no banheiro beber água”. O Diogo está rasgando o caderno do Paulinho, que o professor encapou no começo do ano e colou adesivos que comprou com o próprio recurso... “Barbara não jogue água no Luiz, que feio isso...”; “Quero ir no banheeeeeeeiro, beber água...”; “Prô, sabia que minha mãe desfilou pelada no carnaval?”; “Eu quero ir no baheeeeeiroooooo”, “Sentam todos, pelo amor de Deeeeeeus”; “Prôooooo, ele cortou o meu cabelo”.

Cinco minutos depois, por volta dos 30 minutos da primeira aula, quando o campo parecia suspirar paz, o professor pisa numa poça d’água no chão da sala, com uma cor peculiar. Olha indagando-se sobre goteiras, mas não havia chovido por dias.

Letícia estava sentada no seu canto, quietinha e já tinha terminado o cabeçalho.
 
valdirfilosofia
Enviado por valdirfilosofia em 20/03/2014
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