CAVERNA
Porque escrever é ato de libertação
Textos
AULA DE MATEMÁTICA


 
A professora pergunta para a classe: “Para que serve aprender matemática?” E o mirradinho de 6 anos responde que é para vender maconha.  De certo seria outra afronta do garoto que tinha a fama de ser rebelde, indisciplinado, agitador, baderneiro. Mas como pode em tenra idade ter tantos adjetivos? A professora tornou a perguntar à classe, fingindo não ter ouvido a resposta do pequeno. Diante uma sala muda que não sabe a resposta ou não quer responder com medo de estar errado, novamente o menino responde: “Pra vender maconha, Pro”. Não podendo mais se dar por desentendida ou surda ou qualquer coisa que o valha, dirigiu um olhar de espanto ao garoto que se encolheu na cadeira ao ver a cara de abismo da professora.
 
Na manhã de domingo a mãe e o padrasto, junto com os seus, estavam numa festança animada regada de cerveja barata e carne de segunda. Diego estava sentado em um banco abaixo de um ipê roxo florido. A criatividade da idade o fazia perguntar como pode uma árvore ter uma cor só. “Porque você é um animal maconheiro que não sabe contar”. “Você veio dá mi na minha casa?.” “você é um filho da puta” Uma flor então caiu lentamente e Diego acompanhou até chegar ao chão
 
“Eu não entendi muito bem o que você disse menino. O que foi que você disse?” Rispidamente indagou ao aluno que acuado, gaguejou. “ma-ma-co..” Sua voz foi sumindo pela pura decepção. Talvez fosse aquele momento o único momento que poderia mostrar aos amigos que sabia. Que tinha algum conhecimento. Ninguém sabia, mas ele sabia para que servia a matemática. Havia aprendido, não esquecido. Gravado na memória. Surgiu a oportunidade de mostrar o seu valor. Mas percebeu que estava enganado. Acreditava fielmente que seria a resposta certa, mas agora não tinha mais do que dúvidas.
 
Todos estavam, na altura do churrasco, mais do que regados a bebidas, maconha e carne. A comemoração de fato louvável. A saída do primo da cadeia era motivo de sobra para festejar. Preso por não denunciar o traficante. “Não diz quem é o dono da boca, paga por ele”. O advogado contratado demorou demais para socorrer. Não sei por que, se está muito bem pago. Um favor pela lealdade... o primo deveria ter sido solto muito tempo atrás. “Filha da puta sim, mano, você é um filha de puta burro. Eu passei lhe mais de 500 gramas em 50 papelotes. Cadê o resto da grana? Você vai me fuder com o Grande lá. Cadê o resto da grana? Você fumou?” A música alta, o funk estava bombando e as meninas se esfregavam nos meninos. Isso para Diego era estranho, mas já sentindo que deveria ser gostoso. Todos davam risada, falavam alto. Gritavam. Mais alto que a música. E o ipê? Estava lá, florido. Era bonito ficar olhando, mas não podia de deixar de participar de tudo o que estava lá. Era muito mais alto do que o ipê.
 
O aluno, quase sumindo para baixo da carteira, forçou a cabeça. Já sabia que a resposta que dera desagradara a professora. Precisava mudar de resposta rápido. Porque precisava agradar, senão estaria ferrado mais uma vez. E talvez, de quebra, poderia acertar e sair como sabido. Apertou a cabeça e lembrou-se do ipê. O ipê olhou para ele e ele olhou para o ipê. “A vida é tão complicada?”. O ipê respondeu que muitas vezes a complicação não é da vida, mas as pessoas que fazem assim. Mais uma flor caiu e ele contou duas, até o momento. “Você é muito burro, não vou entregar mais nada para você”; “ta cara, ta... pode me dá um tempo. Vou conversar com a Gisleine. Ela é quem conta. Ela vai te explicar”. A terceira flor caiu e ele disse três. “Contar”.
 
A professora quase engolindo o aluno com toda a sua revolta esperava do mesmo um posicionamento sobre sua resposta. Uma retratação, uma desculpa, como sempre. Não havia jeito. Era aluno rebelde, de família promíscua. Não tinha futuro, muito menos capacidade intelectual. Um burro de verdade. Por que estaria na escola. Vai ser traficante, drogado como os pais. Ele olhou para a professora e disse: “Para contar”
 
Gisleine trouxe o caderninho de contabilidade. Mostrou que sabia contar. Estava certo, nada faltando. Se houvesse algum problema, era com ele e com o Grande. Nada mais. Repassara tudo, como fora combinado. Ela sabia contar. Mais uma flor caiu lentamente do ipê até atingir o solo. Diego acompanhou e contou: “quatro”. A professora assustou e recompôs-se. “Certo Diego, certo. Bem, como eu dizia, crianças... a Matemática serve para...’
 
A aula continuou, a matéria precisava ser seguida, o tempo era escasso, havia muito a que se dedicar, ensinar, alfabetizar, letrar. Diego estava, por hora, feliz. Era o mais inteligente naquele momento. Sabia a resposta, ninguém mais sabia. Ele sabia, mas ninguém sabia por que ele sabia.
 
Mas lá no fundo ele sabia por que ele sabia. E no final, cada um acaba ficando sozinho sabendo o que sabe, porque não interessa o que você sabe e por que você sabe. Saber parece ser tão suficiente a ponto de solucionar os problemas do mundo inteiro... E eu que relato agora, quero deixar de saber um pouco e vou beber.
 
 
Valdir Lopes
08/08/2013
valdirfilosofia
Enviado por valdirfilosofia em 08/08/2013
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